quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Religião e homossexualidade


por Ferdinando Martins

Não é difícil encontrar na mídia algum ministro religioso lançar frases discriminatórias e preconceituosas contra os homossexuais. Mais do que propor-se como um elo de ligação entre os seres humanos e o invisível, a religião dita normas de comportamento e transmite visões de mundo que podem se chocar com o que gays e lésbicas sentem e vivem. Numa perspectiva comparada, podemos observar que, de alguma forma, as principais religiões do mundo contemporâneo posicionam-se sobre os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.
No judaísmo, a questão central é a aceitação do homossexual como ser humano, embora a homossexualidade seja condenada. Para Henry I. Sobel, presidente do rabinato da Congressão Israelita Paulista, "o judaísmo encara a relação homossexual como anti-natural, contrariando a própria anatomia dos sexos, visivelmente concebido para as relações heterossexuais. Além disso, o ato homossexual obviamente não leva à procriação, que é uma das principais funções da sexualidade humana, embora, certamente, não a única. É importante, entretanto, fazer uma nítida distinção entre o ato homossexual e o homossexual como ser humano. Acredito que o indivíduo, no caso o homossexual, tem que ser aceito pela sociedade, independentemente das suas tendências sexuais serem aprovadas ou condenadas. A meta é integrar o homossexual, e não aliená-lo. O dever da religião em geral e do judaísmo, em particular, é estender a mão àqueles que se sentem marginalizados. Abrir as portas, abrir os nossos corações e não discriminar. Somos todos filhos de um único Deus". No entanto, muitos gays e lésbicas judeus já estão organizados, questionando as interpretações ortodoxas do Talmud e da Torá (os livros sagrados para os judeus), como é o caso do World Congress of Gay, Lesbian, and Bisexual Jewish Organizations (http://www.wcgljo.org ) e do Grupo GLS de Judeus Brasileiros (http://sites.uol.com.br/akiva). Em Israel, as relações homossexuais são permitidas por lei a partir dos 16 anos.
No caso do cristianismo, a questão é mais complicada, dada a diversidade de segmentos que vão desde a Igreja Católica até grupos com uma expressão numérica e geográfica bem menos significativa. A posição da Igreja Católica é bem conhecida: o papa nega, condena e escreve contra, mas a presença maciça de homossexuais na Igreja, até mesmo como líderes religiosos, evidenciam uma contradição entre o que o Vaticano prega e o que de fato é vivido nas paróquias. É o caso da história verídica relatada pela ex-freira Anna França no livro Outros Hábitos (Editora Garamond). Anna conheceu seu primeiro amor lésbico no convento, quando apaixonou-se pela madre superiora Heloar. As igrejas evangélicas também não parecem muito favoráveis à diversidade sexual, conforme podemos comprovar com as contínuas frases preconceituosas de seus pastores, repetidas à exaustão em programas de televisão e panfletos religiosos. Talvez a saída para a não-discriminação no cristianismo esteja sendo encontrada por líderes protestantes mais antenados com o mundo contemporâneo, como é o caso do pastor presbiteriano Nehemias Marien, do Rio de Janeiro (RJ), que realiza casamentos gays e missas com a bandeira do arco-íris.Outro sinal de mudança veio do arcebispo Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz de 1984, que pediu perdão pelo tratamento dispensado pela Igreja Anglicana aos homossexuais: "Ninguém que seja fiel aos ensinamentos de Cristo pode condenar pessoas com base em sua orientação sexual."
Diferente do judaísmo e do cristianismo, que tiram suas conclusões sobre a homossexualidade a partir de textos de sentido dúbio da Bíblia, os muçulmanos têm um posicionamento mais forte, calcado em versículos do Corão que não deixam dúvidas: as relações entre dois homens (chamadas de lauat) ou entre duas mulheres (sehak) devem ser punidas, em alguns casos até mesmo com a morte. De acordo com o sheik Movaffagh Kaebi, do Centro Islâmico no Brasil, CIB, "Deus criou tudo como macho e fêmea. Em questão de jurisprudência islâmica, por exemplo, um homem não poderá nunca casar-se com uma irmã de outro homem com quem teve relações sexuais". Para Nasser Khazraji, filho de outro sheik, os homossexuais devem procurar tratamento psicológico, posição esta compartilhada por Paloma Awada, também do CIB, que cita Freud e a teoria dos traumas: "Encaramos a homossexualidade como um problema que devemos cortar pela raíz". Para se ter uma idéia do que acontece na prática, um homem que dormir com outro em baixo de um cobertor sem roupa, mesmo sem ter havido sexo, é punido com 90 chibatadas. Duas mulheres em igual situação são punidas com 99 chibatadas! Ui!
A tônica dessas três religiões - cristã, judaica e islâmica - é uma idéia
de sexualidade presa à reprodução e a uma suposta natureza dada pelos aspectos morfológicos do corpo. Líderes judaicos e cristão tendem também a defender a idéia de "amar o pecador, mas não ou seu pecado", ou seja, aceitar o homossexual, mas condenar o seu comportamento sexual. Para o escritor Pedro Almeida, essa postura vem sendo adotada recentemente e pode estar ligada ao interesse dos líderes religiosos de aumentar o número de fiéis, numa época em que cada vez mais as religiões estão sendo esvaziadas. Isso ele presenciou durante o tempo que viveu como membro da LBV, narrada no livro Desclandestinidade (Edições GLS).
Por outro lado, as religiões orientais buscam primeiramente respeitar as diferenças. Para o budismo, o importante é cada pessoa ser responsável pelos seus atos e agir com sabedoria, sem haver um certo ou um errado definitivo.
Segundo Caioco Nagawa, praticante do budismo, o budismo prega sempre a tolerância com as opções individuais em qualquer aspecto da vida, incluindo a sexualidade.
A Associação Espiritural Brahma Kumaris, fundada pelo líder religioso de ascendência hindu Prajapita Brahma, é também bastante receptiva aos
homossexuais. Embora sua doutrina não trate diretamente da homossexualidade, de acordo com a coordenadora nacional da associação no Brasil, Luciana Ferraz, o ser humano é espírito e o corpo é sua vestimenta. Para ela, as causas da homossexualidade podem ser múltiplas, ligadas diretamente a conexões e vivências de vidas passadas."Na Brahma Kumaris, os homossexuais são absolutamente aceitos. Vários professores são homossexuais", relata Luciana. Na Austrália, o Brahma Kumaris tem um serviço espiritual, que promove encontros, retiros espirituais e cursos exclusivamente com homossexuais.
O kardecismo - doutrina religiosa com cerca de 16 milhões de adeptos no Brasil - tem discussões densas a respeito da homossexualidade, muito embora as obras de Alan Kardec não se refiram a ela diretamente. Segundo Mariuccia Marciano, médica, expositora espírita e trabalhadora mediúnica, "o espírito não tem sexo, tem potencialidades masculinas e femininas, que após muitas encarnações atingem um equilíbrio". Nesse sentido, os relacionamentos homossexuais são aceitos sem problemas, desde que haja amor. "O amor é de espírito para espírito". Sobre a freqüência de homossexuais, Mariuccia afirma que é bastante comum, muito embora não conheça nenhum que exponha abertamente sua condição. "Curioso é que os travestis não se travestem para freqüentar os centros, não sei se por respeito ou por vergonha". Como uma mistura de monoteísmo com crenças orientais, o kardecismo fica no meio do caminho: aceita a homossexualidade, mas confina a vida sexual de gays e lésbicas ao celibato, muito embora Mariuccia afirme que "são as pessoas que são preconceituosas, não o espiritismo".
Aceite ou não o direito à diferença, o fato é que as religiões são hoje
obrigadas a se posicionar de alguma forma face aos homossexuais. Não é possível mais ignorar um segmento da população que é cada dia mais visível, com poder de mercado e formador de opinião. E com muito mais coragem de se mostrar para o mundo do que se esconder em catacumbas morais.

O que dizem sobre a homossexualidade e o que acontece na prática

Cristianismo:
Depende da Igreja. Em geral, condenam a homossexualidade. Mas há alguns grupos que tendem à aceitação e pregam a tolerância, como a igreja anglicana e alguns grupos presbiterianos. Apesar da linha dura mantida pela maioria das igrejas, há um expressivo número de homossexuais praticantes, até mesmo ocupando cargos eclesiásticos.

Judaísmo:
Considera como anti-natural. Adota a norma de “aceitar o pecador, mas não o seu pecado”. Judeus gays formam os grupos mais mobilizados de homossexuais religiosos.

Kardecismo:
Aceita a homossexualidade como resultado de conflitos cármicos, mas incentiva o celibato. Não se fala no assunto. Alguns membros são bastante preconceituosos, outros mais abertos.

Budismo:
A homossexualidade não é questão de interesse religioso, mas de cunho pessoal. A vida sexual de seus participantes não é considerada determinante para a vida religiosa. O homossexual, como qualquer outro membro, deve agir com responsabilidade, respeito e a sabedoria.

Hinduísmo:
Aceita a homossexualidade como questão de fundo moral. A mitologia hindu narra histórias de relacionamentos entre criaturas do mesmo sexo. No Ocidente, parece integrar bem os homossexuais. Resta saber o que acontece nos países orientais, com suas rígidas barreiras sociais.

Islamismo:
Condena abertamente a homossexualidade e o homossexual. Homossexuais ou mesmo atos homossexuais esporádicos são punidos severamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário